sábado, 26 de julho de 2014

Viva! Evoé!


Resenha originalmente publicada aqui.

Como disse o crítico francês Roland Barthes: “Escrever é fazer-se o centro do processo da palavra, é efetuar a escritura afetando-se a si próprio, é fazer coincidir a ação e a afeição”. Esta é a melhor definição que se tem ao ler o livro de poemas do escritor Emmanuel Santiago. O livro Pavão Bizarro, publicado pela Editora Patuá, é o livro de estreia dele como escritor. Relembrando-nos do Parnasianismo — escola literária que talvez seja o grande grito de mudança da poesia brasileira para a literatura, porque rompe com a poesia puramente romântica e redefine e reprojeta o trabalho do poeta com a escrita — o autor nos faz retornar a esse momento artístico pelo qual passou a nossa poesia na literatura, com a construção dos versos, com ritmo das palavras e na busca artística pela estética da poesia, de modo que a arte seja sempre preponderante ou a mais importante.

“Se Olavo Bilac procura
a palavra polida feito
a pérola (…)
é para depois prepará-la
dissipando as impurezas
da prosódia, de modo que
a melodia soe cintilante
em ouvidos de ourives (…)”

(Excerto de “A fábula de Fabergé”)

O autor, mineiro de origem, mas vivendo em São Paulo, causa uma espécie de torpor no leitor com a sua escrita, o que faz a leitura de seu livro ser instigante em cada parte, em cada detalhe de sua organização, em cata ato de construção ou por cada enredo que ele revela ao longo de seus poemas. Não somente Ouro Preto e Mariana, cidades mineiras reveladas por suas lembranças e por marcos históricos de registros, como em “Igreja de Nossa Senhora do Pilar (Ouro Preto)” e “Igreja de São Pedro dos Clérigos (Mariana)”, mas o próprio Estado de São Paulo, onde vive atualmente, não escapa ao retrato artístico do poeta, como ele o mostra em “Na marginal”:

Feito um bombardeio, a noite
se abate sobre São Paulo
e a cidade arde, incandescente

Num céu estilhaçado, a lua escorre
pelos olhos, fosca e opaca, cor
de cocaína batizada, e
me deixa chapado respirando
a fumaça cruenta do asfalto.

Este é talvez o ponto alto que marca a obra de Santiago, porque a obsessão pela arte e pela erudição das palavras, tão comuns aos poetas parnasianos, é contrastada em alguns momentos pela forma com que o autor se expressa e constrói e organiza os poemas de seu Pavão Bizarro. Aliás, a organização do trabalho é profundamente reveladora. Sua poesia é de alto risco, porque ele não escreve sobre ideias prontas, com momentos sentimentais para arrancar deles algum versinho ou alguma coisa bonitinha a se dizer. Santiago sutura sua composição, promove cirurgias nos pensamentos e causa um frenesi no amante da boa poesia, porque ele diz o que tem a dizer, sem a preocupação de exaltar valores, ou de escrever de forma planificada sobre uma experiência ou copiar a forma de dizer de poetas consagrados, tão comuns a escritores em início de carreira (o que me fez durante um período e ainda me inibe a comentar alguns livros de poesia de novos escritores nacionais). Emmanuel Santiago imprime a sua marca como poeta, e dela contagia o leitor, como mostra seu poema “Dionisíaca”:

O vinho tinto
que te molhou os lábios
e afogueou os olhos
fez despir-se, em tua boca,
pétala por pétala,
a hemorragia lenta
da lascívia.

O autor vai dialogar com os “Joões” de suas memórias. Com João Gilberto, uma moda de violão. Com João Cabral de Melo Neto, uma engenharia firme e elegante ao projetar a “casa artística” — desnuda de elogios — por onde as palavras vão habitar. Com João Guimarães Rosa, o embate que o fez romper relações com escritor, por questões políticas, como ele se descreve, e o embate que há entre o que ele pensa sobre o “João Rosa” e o “João Neto”, como aparece no seu poema “joão & joão”:

um joão era fábula
 o outro era fábrica
um joão era lúdico
 o outro era lúcido
um joão era música
 o outro era músculo
um joão
prosa
             com passo de
                                       poesia
                                                      a alquimia do verbo
                                                                                        o outro
                                                            a geometria
                                                               do verso
                                       poesia
             em tempos de
prosa
um joão era mágico
       o outro lógico
       um era mítico
       o outro nítido
      um joão
                  milagre
       agreste
                  o outro
                  um deles se desdobrava em
                                                                fases
                  já o outro                                           corpo lunar
                                   se delimitava em partes
                                                                           coisa linear
um joão era róseo
a rosação das roseiras: frondoso
                                   como o são francisco
                                   esse rio pau enorme
                                   esse joão
rosa
o outro era cabra
planta fibrosa e negra: espesso
                                   como o rio capibaribe
                                   esse cão sem plumas
                                   esse joão
cabral


Emmanuel Santiago faz de sua literatura outra forma de intervenção para a arte e para a realidade. Semelhante ao que Clarice Lispector disse sobre si: “Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro.”, Emmanuel é o tipo de escritor que vai além de coser suas memórias e de falar de dentro delas. Seu jeito arrojado inflama o texto, arranca do ar coisas suspensas, e faz o amante da poesia, gritar e querer ler a sua próxima composição, o seu próximo poema. Seu estilo diabolicamente sacro corta a poesia na sua apresentação, talhando-a por seu trabalho duro e desgastante, porém, extremamente prazeroso que é o ato de compor uma poesia, assim como faz um ourives, ao desenhar uma joia.

Emmanuel é um Voyeur, assistindo e deflagrando de sua escrita o erotismo e os desvios sexuais dos poetas parnasianos. Ele é um verdadeiro “Furor Parnasiano”. As plumas do seu Pavão vão revelar as cores de sua obra artística e a razão de revelar os sentidos delas, para união rica e do Bizarro que ele faz entre a arte e literatura.

Queria meu soneto de cor branca,
todo branco, que nunca fosse negro,
pois o negro é profundo, cheio de ecos
e coisas das quais só se sente o cheiro.

O branco, não. O branco é superfície
e silêncio, o suspense de um relâmpago
retido na espessura de um espelho;
branco é a cor das coisas sem conceito.

Não o branco solúvel, cor de gelo,
nem o branco volátil, cor de espuma,
nem o branco dourado do ouro branco;

quero um branco absoluto, branco abstrato,
o mais puro, o mais claro — mas sem brilho:
quadrado branco sobre o fundo branco.

(Emannuel Santiago, Soneto branco)

O autor quando percebeu: seu Pavão voou e ele perdeu completamente o controle sobre suas asas. Para nós, leitores, quando o vimos voando, um grito de louvação: Viva! Evoé!

Vênus e Marte

Uma cena de Botticelli:
vê-se Marte amortecido
na mortalha que o amor
teceu; Vênus observa
não se sabe o quê, absorta
em divinos devaneios.

No torso do deus
desfalecido, o branco
glacial é frígida labareda
cristalizada em carne, luz
da estrela polar atravessando
a névoa — ou será
a estrela Sirius? —;
sacrílego lírio ardente,
sereno sírio estelar

(Emmanuel Santiago, poesia do caderno “Gente de Palavra”, Edição nº 20)

Josué Souza, julho de 2014.

Informações do autor:
Josué Souza é escritor, autor de As cores do ser: Eu-Livro, a ser publicado em agosto.

Leia mais resenhas de Josué no site Da Literatura.

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